cantos

poema em homenagem ao livro "cantos tortos": 



Existem alguns cantos onde o tempo se acumula
quem já esteve num metrô vai entender melhor o que quero dizer
ao descer as escadas e seguir para o embarque
ao longo da plataforma há alguns recuos
aqueles lugares onde alguns preferem aguardar o trem
- em vez de esperar com os pés na fita de segurança... -
o que eu queria dizer é que nesses cantos
com o vai e vem dos passageiros
um pouco de tempo acaba se acumulando
alguns minutos de alguém que passa correndo atrasado
sempre acaba se desprendendo e indo parar ali

também nos horário de pico quando a multidão se acotovela
o atrito dos corpos desprende um pouco de tempo
- que depois o pessoal da limpeza acaba varrendo sem querer
para esses cantos
ou mesmo se essa poeira de tempo cair nos trilhos
o rápido passar dos trens vai levantá-la e levá-la
a esses cantos, ou seja, é uma questão de tempo para esses minutos e segundos
- e há até relatos de quem já encontrou horas e dias inteiros –
irem parar (temporariamente) nesses cantos

mas esses não são os únicos refúgios de tempos desabrigados
eles também se acumulam nas dobras do sofá da sala
(de televisão, de espera)
nas juntas das pedras das calçadas, no meio fio
debaixo do banco das praças
nas guimbas, nas cinzas - há um restinho de tempo

- as escadas rolantes dos shoppings, dizem, são lubrificadas com esse tempo
Que escorre e às vezes até prendem o cadarço na ânsia por mais tempo
- às vezes, dizem outros, caem uns respingos desse tempo nas sacolas de compra,
responsáveis pela momentânea satisfação nelas encontradas.

o que eu queria dizer é que esses cantos funcionam como trincheiras
sacos de areia de ampulhetas quebradas que protegem contra a pressa diária
há vários tipos desses cantos, um deles é conhecido por cantos tortos
onde o tempo acumulado ricocheteia como uma bolinha de pinball
entre numa espiral, num torvelinho tipo desenho animado
e é atirado de volta ao fluxo dos passantes em outro estado físico
cristalizados em flecha que podem atingir o peito de quem passa
fazendo-o deter-se momentaneamente para talvez lembrar de algo esquecido
ou atingem de esgueio suas idéias mudando o rumo de seus pensamentos

era mais ou menos isso que eu queria dizer pra vocês

("...Este caminhar nos lembra não só a atenção distraída dos surrealistas, mas, também, singularmente, a noção freudiana de atenção flutuante, indícios de que pensamento e escrita também se desdobram à escuta do inconsciente. Caminhar, enfim, que é o da criança, particularmente da criança da 'Berliner Kindheit', parada na janela, esperando escondida atrás de um móvel, atrasada quando vai à escola ou à sinagoga, retirada nos cantos afastados do jardim público, enfim sempre hesitante 'nestes limiares' onde, como o diz com excelência Anna Stussi, 'o tempo se acumula'." Jeanne Marie Gagnebin, História e Narração em Walter Benjamin)

 

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