o documentário "A caverna dos sonhos esquecidos" relacionado a alguns textos



Trabalho desenvolvido para a aula de Metodologia Científica, professor Edson Pfutzenreuter, do curso de especialização em Artes Visuais, intermeios e educação, no Instituto de Artes da Unicamp. O filme é relacionado aos textos Teoria do conhecimento e arte, de Jorge de Albuquerque Vieira; Filosofia na formação do educador, de Demerval Saviani; e Da necessidade do pensamento complexo, de Edgar Morin.  


Há um documentário de Werner Herzog chamado A caverna dos sonhos esquecidos sobre a caverna Chauvet, na França, e suas pinturas rupestres. O filme mostra o trabalho de uma equipe variada de pesquisadores, como paleontólogos, arqueólogos, historiadores da arte etc, e seus estudos sobre os diferentes aspectos da caverna, principalmente suas pinturas rupestres.

As pinturas impressionam pela sua sofisticação para a época, de acordo com testes, datam de cerca de 30 mil anos atrás e podem ser a forma de arte mais antiga já encontrada. Num dos trechos do filme, um dos paleontólogos diz que entre os objetivos dos estudos está tentar reconstruir a realidade dos homens responsáveis por tal arte, ou melhor, montar uma representação sobre o que aquelas pessoas pensavam e sonhavam, a partir dos desenhos.

Na conferência Teoria do conhecimento e arte, Jorge de Albuquerque Vieira, professor de semiótica e sistemas de sinais, fala sobre o conceito de unwelt do biólogo estoniano Jakob von Uexküll (1864-1944). Vieira traduz unwelt como mundo em torno, que poderia ser representado pela imagem de uma bolha perceptiva. O professor destaca no início de sua fala que entende a arte como um tipo de conhecimento, entre outros como a ciência, a filosofia, a religião e o senso comum, e todas as formas de conhecimento têm como direção a sobrevivência da espécie humana.

O documentário pode ajudar a entender essa afirmação de que o conhecimento tem como direção a sobrevivência humana, uma vez que o(s) autor(es) daquelas pinturas e os homens da pré-história lidavam com a questão da sobrevivência de uma maneira mais literal. Ferreira Gullar[1], no documentário chamado A necessidade da arte, diz “todo bicho nasce completo, ele tem as garras e a velocidade para caçar; agora, imagine o homem na caverna, cada mamute gigantesco e o homem para caçá-lo não tem nem unha, nem garra, como ele iria capturar a presa? Aí ele teve de fazer faca, fazer flecha, ele teve de inventar os instrumentos que nenhum animal precisa inventar.” Inclusive a arte.

Além disso, a idade das pinturas rupestres de Chauvet contribui para a afirmação de Vieira de que o conhecimento artístico é anterior ao científico e filosófico. Embora seja complicado determinar a ordem que o homem primitivo começou a desenvolver ferramentas, o trabalho, a linguagem, a arte etc. O mais provável é que tais “descobertas” tenham ocorrido concomitantemente e uma tenha influenciado a outra.    

CINEMA 3D E O CONCEITO DE UNWELT

O recurso tecnológico do 3D tem um papel nesse filme que vai além de apenas assustar o público com alguns objetos projetados fora da tela. Herzog tenta utilizar o recurso de maneira a transformar a experiência do expectador do filme. Em algumas cenas a caverna é projetada fora da tela para que o expectador se sinta dentro dela. Pode-se estabelecer uma comparação entre essa sensação do público – de se sentir no interior da caverna – com o conceito de unwelt, de Uexküll, de mundo ao redor, bolha perceptiva. A experiência proporcionada pelo 3D funciona como uma extensão da bolha perceptiva do expectador (a caverna, aliás, já é uma espécie de bolha – cápsula, nas palavras de Herzog -, do tempo, por ter ficado tanto tempo inacessível, seu ambiente manteve-se intacto).  

Numa das cenas, a fotografia do filme tenta imitar como os homens daquela época observavam as pinturas através da luz das fogueiras. Este procedimento também se relaciona com o conceito de unwelt, no sentido de tentar colocar-se no lugar desses homens e se sentir como eles, ao invés de interpretar aquelas imagens de nosso ponto de vista.
A fala do paleontólogo citado anteriormente trata disso, construir uma representação do modo de vida daquelas pessoas, e seu pensamento mostra como a ciência busca a realidade, ou pelo menos sua representação, sua simulação. A equipe de pesquisadores de diversas áreas científicas quer desvendar os mistérios da caverna com os métodos precisos de datação, análise química e física das rochas, esqueletos, etc.


No entanto, grande parte deste sítio arqueológico é de outra ordem, é uma “inutilessência” que escapa do conhecimento discursivo científico. Por isso, artistas e historiadores da arte fazem parte da equipe, eles por meio de alguma forma de conhecimento tácito (forma de conhecimento relacionado às nossas experiências, percepções, um conhecimento que dificilmente se comunica por meio discursivo; exemplos de conhecimento tácito: linguagem corporal, entoncação da voz, a "arte", ou seja, esse conhecimento está mais relacionado ao campo "estético") tentam “desvendar” aquelas pinturas. É o que Vieira diz sobre a arte lidar com as possibilidades do real.   
Vieira fala da necessidade de uma visão holística, complexa, da realidade. Assim como Edgar Morin, em Da necessidade de um pensamento complexo, diz que “o problema do conhecimento é um desafio porque só podemos conhecer, como dizia Pascal, as partes se conhecermos o todo em que se situam, e só podemos conhecer o todo se conhecermos as partes que o compõem”. A variedade de áreas do saber envolvida nas pesquisas sobre essa caverna evidencia essa importância de conhecer o todo e cada parte desse todo.


HERZOG, ESTÉTICA E ÉTICA

O professor Jorge Vieira, numa palestra no Planetário de São Paulo[2], cita C.S. Peirce para explicar a relação entre estética, ética e produção de conhecimento. Vieira diz que para Peirce a realidade é magnífica, extremamente bela e sedutora e que você pode se apaixonar por essa realidade, ou por aspectos dela – esse apaixonar-se está relacionado à estética. A partir disso, você precisa desenvolver uma atitude compatível com essa paixão, essa atitude está ligada à ética. Depois disso, você está preparado para a produção de conhecimento.

Werner Herzog sempre foi apaixonado por pinturas rupestres. Numa entrevista[3] na época do lançamento do filme, o cineasta contou que quando era criança gostava tanto de observar figuras rupestres que chegou a arrumar um trabalho só para conseguir comprar um livro sobre o assunto. Tal fato biográfico ajuda a entender a relação estética – de paixão –, de Herzog por essa arte.


O filme sobre Chauvet mostra sua relação ética com o objeto de sua paixão, no sentido de que aquelas pinturas permaneceriam desconhecidas para grande parte do mundo, sem seu documentário (já que o acesso à caverna é restrito). E ele vai além do trabalho de simplesmente registrar imagens, quando utiliza o recurso 3D e propõe reflexões filosóficas ao público. É como se Herzog tentasse compartilhar sua paixão com o expectador.
Há outros aspectos éticos implicados na descoberta da caverna, por exemplo, a decisão de mantê-la inacessível para turistas se deve ao que ocorreu em Lascaux, as pinturas rupestres dessa caverna começaram a apresentar mofo devido à respiração dos muitos turistas. Por causa disso há uma réplica da caverna de Lascaux e será construída uma de Chauvet.


Saviani, no texto A filosofia na formação do educador, no tópico sobre a necessidade de resgatar a "problematicidade do problema" fala sobre o paradoxo de fenômenos (realidades) que, ao mesmo tempo, revelam e escondem a sua própria essência. E, citando Karel Kosik, fala sobre a necessidade de se destruir essa “pseudo-concreticidade”, para se alcançar tal essência.
Essa busca pela essência talvez esteja relacionada com o fato de tornar sua paixão, seu objeto de pesquisa, interessante à comunidade científica e ao público. Descobrir qual aspecto singular de seu objeto é universal e diz respeito a outras pessoas (nisso residiria a essência, encontrar o universal no particular).


Os textos e o exemplo desse filme ajudam na elaboração de um projeto de pesquisa, pois mostram o que pode ser os passos iniciais de um modo de pesquisa. Por exemplo, Jorge Vieira ao citar Peirce e a relação estética, ética e produção de conhecimento, mostra um dos caminhos básicos de uma pesquisa científica, de ser uma investigação sobre um objeto de seu interesse, o modo como essa investigação será feita, como o pesquisador lida com seu objeto e o conhecimento produzido deveria enriquecer a comunidade científica e se possível o conhecimento geral.
O filme é um exemplo de uma investigação científica movida pela paixão daqueles pesquisadores e do cineasta. E como essa busca arqueológica ao ser transformada em narrativa cinematográfica pode afetar as pessoas em geral. 

(A jornalista Eliane Brum escreveu um ótimo texto sobre A caverna dos sonhos esquecidos e num momento ela diz "não entendo como não há excursões para assistir a esse filme"; eu também não entendo rs)

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