perspectiva e close


Este trabalho pretende fazer uma comparação entre a noção de perspectiva desenvolvida na pintura renascentista, e seu contexto histórico, e a utilização de closes em obras audiovisuais atualmente, recurso usado para o consumo dessas obras sobretudo em dispositivos móveis (assunto discutido em aula). Este texto proporá uma relação entre esta comparação e o que Stuart Hall descreve como “descentramento do sujeito”, em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade.

Além disso, alguns conceitos empregados por McLuhan em Os meios de comunicação como extensões do homem, e outros de Adorno, presentes no texto A Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das Massas, também serão utilizados.

Com base na comparação citada e nesses conceitos, este trabalho procura levantar algumas especulações e considerações sobre aspectos da identidade do homem contemporâneo, características da época atual, meios de comunicação e arte. 

A perspectiva na pintura renascentista e seu contexto 


Anatol Rosenfeld, no texto Reflexões sobre o romance moderno, ao fazer algumas considerações sobre a arte moderna (pintura, sobretudo) e o que ele descreve como desrrealização na arte, retoma alguns aspectos da arte renascentista, entre eles o desenvolvimento da técnica da perspectiva:  



A perspectiva foi abolida ou sofreu, no surrealismo, distorções e “falsificações”. Sobre este fato há muitas especulações fascinantes. A perspectiva central, eliminada pela pintura moderna, surgiu no Renascimento: a perspectiva grega, diversa da renascentista, foi introduzida na época dos sofistas, no século V a.C. Como se sabe a pintura egípcia ou a pintura europeia medieval – para dar só estes exemplos – não conheciam ou não empregavam a perspectiva. As hipóteses sobre este curioso fenômeno tendem a considerar provável que a perspectiva seja um recurso para a conquista artística do mundo terreno, isto é, da realidade sensível. É característica típica de épocas em que se acentua a emancipação do indivíduo, fenômeno fundamental da época sofista e renascentista. (Rosenfeld, 1996, p. 77)



Em seguida, Rosenfeld amplia sua reflexão para estas hipóteses, de que a perspectiva seja um “recurso para a conquista artística do mundo terreno” e sobre a emancipação do indivíduo. Para tanto, o autor explica mais detidamente a técnica da perspectiva e a relaciona com o contexto filosófico da época:   



A perspectiva cria a ilusão do espaço tridimensional projetando o mundo a partir de uma consciência individual. O mundo é relativizado, visto em relação a esta consciência, é constituído a partir dela; mas esta relatividade revela-se da ilusão do absoluto. Um mundo relativo é apresentado como se fosse absoluto. É uma visão antropocêntrica do mundo, referida à consciência humana que lhe impõe leis e óptica subjetivas. Na filosofia ocidental, esta constituição do mundo surge pela primeira vez com os sofistas: “O homem é a medida de todas as coisas” (Protágoras)”. A visão perspectívica ressurge depois na filosofia pós-renascentista com Descartes que pelo menos parte do cogito, supondo como única certeza inabalável a do eu existente (é a partir dela que Descartes reconstrói o mundo desfeito pela dúvida). E encontrou sua expressão máxima em Kant que projeta o mundo dos “fenômenos” – isto é, o mundo como nos aparece, único a que teríamos acesso – a partir da consciência (não importa, neste contexto, que não se trata de uma consciência individual). (Rosenfeld, 1996, p. 78)



O autor chega à conclusão que a visão perspectívica seria impossível na Idade Média, pelo fato da noção da época na qual a Terra era fixa, portanto o homem também teria uma posição fixa no mundo, e cabia a mente divina, e não a humana, estabelecer a ordem. Depois da reviravolta copernicana, a Terra começa a mover-se e essa ordem, a mudar. Tal relação entre perspectiva e a “noção de sujeito” que ela ajuda a construir será retomada adiante na descrição da “descentramento do sujeito moderno”.



Numa análise semelhante, McLuhan, no texto Armamentos – A guerra dos ícones, estabelece uma relação entre a técnica da perspectiva e algumas tecnologias.



No início, fora a ênfase linear da perspectiva que canalizara a percepção em rumos que conduziram a criação da arma de fogo. Antes desta, a pólvora fora utilizada de forma explosiva, como a dinamite. O emprego da pólvora para a propulsão de projéteis teve de esperar pela descoberta da perspectiva na pintura. (McLuhan, 1964, p.382)



McLuhan também compara as armas de fogo com seu “ancestral” arco e flecha e diz que enquanto este é uma extensão da mão e do braço, aquelas são extensões do olho e dos dentes. “E é assim que se pode estabelecer o elo entre a arma de fogo e o surgimento da perspectiva, bem assim com a extensão do poder visual na alfabetização e na cultura escrita.” Além disso, o autor estende a influência da perspectiva linear das artes para o emprego do ímã ou pedra magnética na bússola para a navegação, o que colaborou com a expansão marítima europeia.
Até aqui podemos ter uma ideia de como a perspectiva estava inserida em sua época. Estas relações servirão de exemplo para levantar algumas especulações sobre de que forma outros recursos estéticos se inserem, modificam e são modificados pelo seu entorno atualmente.       


Descentramento do sujeito 

Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade levanta algumas questões sobre uma possível “crise de identidade” do indivíduo contemporâneo. Um dos motivos para tal crise ou mudança consiste num processo denominado por ele como descentramento do sujeito moderno. 


Para Hall, o nascimento do “indivíduo moderno ou soberano” ocorre entre o Humanismo Renascentista, no Séc. XVI, e o Iluminismo, no Séc. XVIII, com o auxílio de movimentos como da Reforma Religiosa e do Protestantismo, “que libertaram a consciência individual das instituições religiosas e a expuseram diretamente aos olhos de Deus”. O indivíduo moderno caracterizava-se como mais centrado, unificado, dotado de uma essência fixa, de capacidades da razão, consciência, ação etc.  


No entanto a partir do século XIX, grandes alterações nas ciências humanas deram início a um processo de fragmentação desse sujeito. Hall expõe cinco avanços na teoria social que ajudaram no “descentramento do sujeito cartesiano”. Foram eles: o marxismo (“os homens fazem a história, mas apenas sob as condições que lhes são dadas”), a descoberta do inconsciente por Freud (o homem já não é senhor de si mesmo), a linguística estrutural de Saussure (a língua é um sistema social e não individual), “o poder disciplinar” de Foucault e o impacto do feminismo.      


O ponto de partida da explicação de Hall pertence a uma época próxima do desenvolvimento da perspectiva e seu ponto de chegada é mais ou menos a época atual (que ele chama de modernidade tardia ou pós-modernismo). “O “sujeito” do Iluminismo, visto como tendo uma identidade fixa e estável, foi descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós-moderno.”


No início deste texto, há a citação de Rosenfeld de que “a perspectiva foi abolida ou sofreu, no surrealismo, distorções e “falsificações”.” Outros traços das vanguardas do início do século XX anunciam esse sujeito fragmentado, por exemplo, o cubismo. Adorno lança mão do termo pseudo-individualidade e escreve: “Na indústria, o indivíduo é ilusório não apenas por causa da padronização do modo de produção. Ele só é tolerado na medida em que sua identidade incondicional com o universal está fora de questão”.     


Close


As tomadas em close estão frequentes, hoje em dia, em obras audiovisuais, como cinema e novela, por causa de um processo descrito como MDC (Máximo Divisor Comum) das tecnologias, ou seja, os recursos estéticos de uma obra devem permitir que tal ela seja consumida nos mais diversos meios, desde uma tela de cinema, televisão até a tela de um celular. Este processo funciona pela lógica econômica (da indústria cultural), quanto maior o consumo, maior o lucro. 


Numa comparação simplista e redutora, se a técnica da perspectiva, segundo exposto, impele o indivíduo a “conquistar” mundo sensível e ajuda a formar um sujeito “soberano”, poderia se especular que uma técnica que parece ser seu contrário (o close) contribuiria para inibir o indivíduo em face do mundo, assim como para sua fragilidade ou fragmentação.


McLuhan diz que meios como televisão, rádio, celular funcionam como extensão do sistema nervoso humano. Numa analogia, o homem contemporâneo tem o corpo de um anão e uma cabeça de gigante. Uma capacidade tecnológica de interagir com o mundo, num ambiente que incentiva ao máximo o individualismo, e um senso de coletividade precário – ambiente típico do neoliberalismo. 



Em outra comparação mais apocalíptica, se a perspectiva ajudou a desenvolver o lançamento de projéteis, os recursos estéticos atuais teriam alguma ligação com uma espécie de autodestruição do indivíduo promovida, por exemplo, pelo uso de drogas e antidepressivos? McLuhan no texto O amante de gadgets – Narciso como narcose observa como nossa cultura interpreta esse mito:



(...) a sabedoria do mito de Narciso de nenhum modo indica que ele se tenha enamorado de algo que ele tenha considerado como sua própria pessoa. É claro que seus sentimentos a respeito da imagem refletida teriam sido bem diferentes, soubesse ele que se tratava de uma extensão ou repetição de si mesmo. E não deixa de ser um sintoma bastante significativo das tendências de nossa cultura marcadamente tecnológica e narcótica o fato de havermos interpretado a história de Narciso como um caso de auto-amor e como se ele tivesse imaginado que a imagem refletida fosse a sua própria! (McLuhan, 1964, p.59 e 60)  



O autor diz que ao mesmo tempo em que as tecnologias funcionam como extensões de nosso corpo, elas também funcionam como “auto-amputações”; e cita o exemplo da roda, extensão de nossos pés (locomoção), “a pressão das novas cargas resultantes da aceleração das trocas por meios escritos e monetários criou as condições para a extensão ou ‘amputação’ daquela função corporal”. E o próprio desenvolvimento da roda intensificou e ampliou ainda mais essas trocas, como se para esse novo ritmo nossos pés “não servissem mais”. McLuhan diz que a eletricidade funciona como a extensão de nosso sistema nervoso e “na era da eletricidade, usamos toda a Humanidade como nossa pele”. A internet acentuou ainda mais este aspecto de “consciência da totalidade”, ainda que muitas vezes ela seja “ilusória”.  


Considerações finais


Como esses recursos de dispositivos móveis atuam nessa “crise de identidade”, são um sintoma dela e também agravam-na de certa forma? Algumas suposições enveredam pelo caminho apocalíptico contribuindo para, por exemplo, no cenário em que vemos um grupo de amigos, ao invés de conversarem entre si, cada um está concentrado em seu celular. De que maneira esse aparelho que, ao mesmo tempo em que possibilita a conexão com o mundo, também encerra os indivíduos em si mesmos? E nesse aspecto, a utilização de closes parece evidenciar esse “ensimesmamento”, essa ênfase no detalhe, na parte que vira o todo.



Em que medida a grande quantidade de fotografias das trivialidades da vida das pessoas circulando na internet, desde fotografias do almoço até vários “autorretratos” são sintomas daquilo que McLuhan chama como um meio que ao mesmo tempo que funciona como extensão do corpo, é também uma “autoamputação”. Outra suposição: estariam as pessoas a procura de si mesmas nessas várias fotografias?


Adorno diz que “ao processo de trabalho na fábrica e no escritório só se pode escapar adaptando-se a ele durante o ócio”, Márcia Tiburi, num ciclo de palestras chamado Felicidade? (disponível no youtube), interpretando o texto da indústria cultural, de Adorno, diz que as pessoas tiram tantas fotografias de suas horas de lazer para fazer um registro, como para provar a si mesmas que estão se divertindo e tentam se divertir numa lógica de produção e rendimento do trabalho.   


Além disso, a fragmentação dos próprios meios de comunicação parecem contribuir ainda mais para uma fragmentação da identidade do homem. E o consumo, cada vez mais segmentado, leva a uma individualização, no sentido de que, várias pessoas podem assistir à televisão, enquanto que o celular, apenas uma. 

Outro aspecto “perverso” dessa fragmentação dos meios é que ela parece cumprir certa função da indústria cultural. Por exemplo, quando Adorno escreve:



Ao subordinar da mesma maneira todos os sectores da produção espiritual a este único fim: ocupar os sentidos dos homens da saída da fábrica, à noitinha, até a chegada ao relógio do ponto, na manhã seguinte, com o selo da tarefa de que devem se ocupar durante o dia, essa subsunção realiza ironicamente o conceito da cultura unitária que os filósofos da personalidade opunham à massificação. (Adorno, p. 62)



Assim o consumo (de bens culturais) nunca deve parar, se o sujeito está se deslocando do trabalho para sua casa, ele deve consumir algo por meio de seu celular, por exemplo.


(Texto de avaliação para a aula Arte e Comunicação, professor Eduardo Paiva, curso de especialização em Artes Visuais, intermeios e educação, Instituto de Artes da Unicamp.)



Bibliografia

Adorno, Theodor. A Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas.

Hall, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. DP&A Editora: Rio de Janeiro, 2011.

McLuhan, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Editora Cultrix: São Paulo, 1964. 

Rosenfeld, Anatol. Texto / Contexto I. Editora Perspectiva: São Paulo, 1996.


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