La jetée e o anjo da História
Pareyson inicia seu livro Os Problemas da Estética com o capítulo “Natureza e tarefa da estética” e, num tópico sobre o seu caráter filosófico, enumera três importantes princípios desta área. Em primeiro lugar, o autor diz que não é possível situar a estética entre a filosofia e a história da arte, porque não há nada de intermediário entre a filosofia e a experiência (estética). Para ele, uma reflexão sobre a arte ou é filosófica, como a estética, e então torna a entrar na filosofia, ou é trabalho de historiador, ou de teorizador da arte, e então entra na experiência, como objeto da filosofia.
Segundo, não se deve dispensar a
estética de dar uma teoria geral da arte. A filosofia tem precisamente a tarefa
de chegar a conclusões teóricas universais, extraindo seus dados da experiência/percepção da realidade.
E terceiro, o discurso de críticos, historiadores e artistas e seu contato
próximo com a arte, ainda que instigante, sem a reflexão filosófica, não é
estética.
No tópico seguinte, sobre o caráter
concreto da estética, Pareyson diz que ela é constituída de um aspecto
especulativo de reflexão filosófica e, ao mesmo tempo, outro aspecto ligado à
experiência (artística, como observador), “não é estética aquela reflexão que, não alimentada pela
experiência da arte e do belo, cai na abstração estéril, nem aquela experiência
de arte ou de beleza, que não elaborado sobre um plano especulativo, permanece
simples descrição”(p. 8).
Em outro esforço para explicar a
reflexão estética, o autor simplifica e diz que o filósofo não conseguiria
dizer nada sobre a arte senão prolongando o discurso do crítico ou artista
sobre um plano especulativo. Se, de acordo com Pareyson, uma reflexão
estética pode partir do discurso do artista ou do crítico, o texto de Márcio
Seligmann-Silva, “Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris
Marker”, pode servir de ponto de partida para o esboço de uma reflexão estética
sobre o filme ("photo-roman") La Jetée.
Seligmann descreve o protagonista do
filme como um homem que busca sua libertação do cativeiro através do reencontro
de duas imagens de sua infância (do rosto de uma mulher e de um assassinato que
presenciou) e diz que ele as persegue tanto quanto é perseguido por elas, ou seja,
perseguido por sua memória. O autor compara esse personagem ao anjo da História, descrito por Benjamin em sua nona tese “Sobre o conceito da História”,
que diz:
Há um quadro de
Paul Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer
afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua
boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu
rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína
sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar
os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e
prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa
tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as
costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o
que chamamos progresso.
Para Seligmann, o personagem de La jetée também gostaria de deter-se
para acordar os mortos e juntar os fragmentos, “do mesmo modo nosso
protagonista volta-se para o passado para redimir a si e às imagens que olham
incessantemente para ele”. E acrescenta que “não seria exagero ver nesse filme
uma mise-en-scène da visão da História de Benjamin só que realizada do outro
ponto de vista, a saber, daquele que se localiza – preso – do outro lado da
catástrofe destruidora”.
O protagonista de La jetée em sua viagem pelo tempo caminha por entre as ruínas, tanto as ruínas de Paris (e da civilização) causadas pela guerra, quanto por entre as ruínas de sua própria memória, já que as únicas imagens de que se lembra são de uma mulher e de um homem sendo assassinado – a imagem do rosto de uma mulher que ele guardou para suportar as loucuras da guerra.
O protagonista de La jetée em sua viagem pelo tempo caminha por entre as ruínas, tanto as ruínas de Paris (e da civilização) causadas pela guerra, quanto por entre as ruínas de sua própria memória, já que as únicas imagens de que se lembra são de uma mulher e de um homem sendo assassinado – a imagem do rosto de uma mulher que ele guardou para suportar as loucuras da guerra.
Algumas fotografias do filme podem ser
relacionadas com a “tempestade que chamamos progresso” da passagem de Benjamin.
Por exemplo, a imagem do Arco do Triunfo destruído pode ser vista como uma
ironia a essa ideia da história como progresso – a guerra ou um monumento a ela não
é exatamente um triunfo. Outra crítica a essa ideia é quando o
narrador diz que os “vencedores” da "Terceira Guerra Mundial" montaram guarda
sobre um império de ratos.
Além disso, os cientistas responsáveis
pelas experiências das viagens no tempo cujo objetivo era convocar o passado e
o futuro para salvar o presente, eram eles próprios incapazes dessa tarefa e
precisavam de homens com “imagens mentais muito fortes, capazes de conceber ou
sonhar outro tempo”. De acordo com o narrador, se esses homens conseguissem
imaginar outro tempo, talvez também fossem capazes de viver neles. Um homem
capaz de imaginar outro tempo, ou outro mundo, não seria um idealista? (mais no sentido de ideologia do que como antônimo de materialista).
Um dos aspectos que uma reflexão
estética poderia suscitar seria esse idealismo, que poderia ser ampliado para uma
característica mais geral sobre arte, por exemplo, e de forma bastante
simplificada, a diferença entre um tipo de arte mais crítica ou outro de um tipo “escapista”.
De acordo com Pareyson, a estética é um
ponto de encontro entre duas vias da reflexão filosófica: uma ascendente, que
parte da experiência para chegar ao universal como resultado; e outra
descendente, que se serve desse resultado para (re)interpretar a experiência
(p.6). La jetée se assemelha a obras
de distopia como 1984, Admirável Mundo Novo, Blade Runner etc, mas também apresenta
referências utópicas, como seu protagonista-idealista e quando este viaja ao futuro e
consegue uma bateria de energia capaz de recolocar a indústria em movimento,
essa bateria de energia vinda do futuro poderia ser também interpretado como um elemento utópico.
Identificar esses elementos no filme (experiência) e confrontá-los com um
caráter distópico ou utópico da arte (aspectos universais) seria uma forma de
percorrer uma dessas vias?
O filme de Chris Marker também faz
referência à temática do tempo – evidentemente – e não apenas por ser um filme
de ficção científica com viagens ao passado e futuro, mas também por ser um
“photo-roman” e mostrar vários elementos que fazem referência à ideia de
duração, como animais empalhados, esculturas antigas, a sequoia cortada
mostrando a linha do tempo, as ruínas etc. A composição do filme com várias
fotografias demonstra como forma e conteúdo se relacionam no filme. Mais uma
vez recorrendo a Pareyson, ele diz que a estética especula também sobre a
experiência do expectador da obra, nesse ponto há diferença entre os efeitos de
uma fotografia “isolada” e 24 fotografias por segundo. Diferença entre o “efeito
de verdade” causado pela fotografia, seu caráter documental e a referência ao
passado, como registro dele (mais uma relação temporal).
E estaria o expectador na mesma situação
que o anjo da história, também imobilizado pela tempestade chamada progresso?
No livro Num piscar de olhos, Walter
Murch diz que na edição de um filme um dos princípios básicos é tentar fazer o
máximo com o mínimo. Segundo ele, a sugestão é sempre mais eficiente que a
exposição, pois a primeira encoraja a participação do expectador, enquanto que
na segunda é como se não houvesse brecha para a imaginação do público.
Outra referência importante no filme é
sobre a morte, com uma guerra que praticamente aniquila a humanidade, o filme mostra
de fato apenas duas mortes – da mesma pessoa – no seu início e fim da narrativa.
E ao final do filme, descobre-se que se trata da morte do próprio protagonista.
As referências ao tempo e a morte também podem ser prolongadas para um plano
especulativo, por exemplo, ao pensar a arte como resistência ao tempo e a
finitude do homem.
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