Alienação e "O espancador", de Kafka
Texto
escrito como conclusão da disciplina "A ideologia da estética: do Romantismo
ao Pós-Modernismo" (que cursei como aluno especial), do professor Daniel Puglia, no Programa de Estudos
Linguísticos e Literários em Inglês, da Universidade de São Paulo.
Introdução
Este texto propõe uma interpretação
do capítulo “O espancador” do romance O
processo, de Franz Kafka, com base no conceito de alienação, de Karl Marx.
Uma das questões abordadas é que a cena do espancador pode ser interpretada
como uma alegoria do processo de alienação, ou estranhamento, elevado a várias potências (exemplo citado em aula).
Também serão assinaladas algumas marcas
desse processo e de outras relações de trabalho referentes ao modo de produção capitalista
em algumas passagens da obra. Além disso, serão destacadas algumas aparentes
contradições na narrativa deste capítulo “O espancador”. Para abordar esses demais
aspectos serão utilizadas reflexões de Walter Benjamin, Erich Heller e Modesto
Carone sobre a obra de Kafka.
Na primeira parte do trabalho a cena
será descrita brevemente e sua interpretação irá se desenrolar
concomitantemente à explicação do processo de alienação e outros conceitos.
O
Espancador
No capítulo cinco de O processo, Joseph K., ao sair de seu
trabalho tarde da noite, é surpreendido por alguns gemidos vindos de um quarto
de despejo de um dos corredores do banco. K. abre a porta e encontra os dois
guardas, responsáveis pela sua “detenção” no começo da narrativa, sendo
açoitados por um terceiro homem. Tem início uma discussão entre os personagens,
e a certa altura este terceiro homem diz: “Fui empregado para espancar, por isso
espanco”. Este capítulo recebe o nome dessa personagem: O espancador.
A descrição desse personagem apenas é
menos perturbadora que sua função de espancar: “estava metido numa espécie de
roupa escura de couro, que deixava o pescoço nu até o peito e os braços
inteiramente à mostra” (KAFKA; 1997; p. 86). Em outro trecho, o narrador ainda
o descreve como “bronzeado como um marujo” e com “um rosto selvagem e
descansado” (KAFKA; 1997; p. 88). O local da cena tem uma atmosfera opressiva,
o quarto é descrito como um cubículo, de teto baixo e iluminado apenas por uma
vela (assim como vários outros locais vinculados ao tribunal).
Os guardas explicam a Joseph K. que
estão sendo castigados por causa de sua “queixa” ao juiz de instrução (segundo
capítulo) sobre o comportamento dos dois durante a sua detenção. K. fica
penalizado e parece até se sentir culpado pelo castigo desumano, e tenta
dissuadir o espancador, inclusive com suborno. No entanto o espancador sente
orgulho de sua posição na organização jurídica e, com um estranho senso ético,
recusa o suborno (apesar de K. supor que ele o recusa num primeiro momento,
para aumentar a soma do suborno). Depois até mesmo K. de certa forma contribui
para o espancamento; diante da vergonha do espetáculo, K. fica com medo que
colegas de trabalho testemunhem a cena, e quando um dos guardas solta um grito
leva um golpe de K.
Alienação
e outros conceitos
Para entender o conceito de alienação ou
estranhamento de Marx é preciso compreender a importância que ele atribui ao
trabalho como atividade humanizadora do homem. Tal importância pode ter se
originado quando Marx verifica o contrário em seu contexto histórico, ou seja,
quando testemunha como o trabalho pode ser fator de degradação humana no
capitalismo.
Konder (1999) para explicar este
conceito, primeiro diferencia o trabalho dos animais do trabalho humano sobre a
natureza. Konder diz que os animais trabalham para satisfazer exigências
práticas imediatas, por instinto e para sobrevivência, ou seja, uma atividade
que não é desempenhada livremente. O homem, no entanto, é capaz de projetar seu
trabalho e escolher um jeito de executá-lo. Pode até certo ponto modificar ou
“utilizar” a natureza de acordo com sua vontade, criar instrumentos,
ferramentas e acrescentar meios artificiais aos meios naturais de seu organismo
– o que Marx chama de ser genérico, “o homem faz da sua atividade vital mesma
um objeto da sua vontade e da sua consciência” (MARX; 2000; p. 84). Dessa
forma, o trabalho humano sobre a natureza acabou por libertá-lo de sua condição
animal, e desta capacidade de transformar o mundo nasceu outra de transformar a
si próprio.
“O desenvolvimento do trabalho criador
aparece, assim, aos olhos de Marx, como uma condição necessária para que o
homem seja cada vez mais livre, mais humano, mais dono de si próprio” (KONDER;
1999; p. 34). No entanto, o trabalho no capitalismo adquiriu um papel
contrário. Konder retoma um dos elementos da dialética de Marx sobre a
necessidade de pensar a partir da realidade, da situação presente, e relata que
Marx ao observar a situação dos trabalhadores na indústria capitalista moderna ao
contrário de testemunhar essa libertação, verifica que eles encaravam seu
trabalho como uma obrigação, como algo que lhes era imposto e os oprimia, “reduzindo-os
a bestas de carga”.
No sistema
atual, assinala Marx, o trabalhador produz bens que não lhe pertencem e cujo
destino, depois de prontos, escapa ao seu controle. O trabalhador, assim, não
pode se reconhecer no produto de seu
trabalho, não pode encarar aquilo que criou como fruto da sua livre atividade
criadora, pois se trata de uma coisa que para ele não terá utilidade alguma. A criação
(o produto), uma vez que não pertence ao criador (ao operário), se apresenta
diante dele como um ser estranho, uma coisa hostil, e não como o resultado
normal da sua atividade e do seu poder de modificar livremente a natureza. (KONDER;
1999; p. 34)
Konder sintetiza bastante o
estranhamento e aborda principalmente o estranhamento do trabalhador com o
produto de seu trabalho. Marx (2000), porém, desdobra esse conceito em várias partes
e afirma que o estranhamento do produto do trabalho é apenas um resumo de um
processo maior, que acontece já na produção do trabalho, e como consequência, no
homem consigo mesmo e com os outros. Marx então se pergunta: “Em que consiste a
exteriorização do trabalho?”
Primeiro, que o
trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não
se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem,
mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas
mortifica sua physis e arruína o seu espírito. (...)O seu trabalho não é
portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. (MARX; 2000; p.82-83)
Num momento da cena do espancador, um
dos guardas lamenta ter sido denunciado não apenas por receber o castigo, mas
por ter sua ascensão no tribunal comprometida e não poder mais, um dia, chegar
a ser espancador – cargo elevado no tribunal. É como se o estranhamento do
trabalho e do homem alcançasse tal nível que virasse seu reverso, ou seja, o
homem – esvaziado de humanidade – se reconhece no trabalho desumano ao se
bestializar e bestializa-se cada vez mais exercendo sua atividade. Seu trabalho
desumano não é mais obrigatório, ele sente prazer nele. Num trecho K. pergunta:
“Não existe nenhuma possibilidade de poupar os dois do espancamento?” e o
espancador responde que não “balançando sorridente a cabeça” (KAFKA; 1997; p.
88).
Marx (2000) ainda explica que o
estranhamento do trabalho leva à desumanização, pois ele faz com que o homem
transforme sua “vida humana e consciente” num meio para a sua “vida animal e
instintiva”, ou seja, faz com que o operário tenha de trabalhar para poder se
alimentar, se vestir, ter um abrigo etc; como se ele sacrificasse sua vida
humana em prol de sua vida animal. “A questão de que o homem está estranhado de
seu ser genérico quer dizer que um homem está estranhado do outro, assim como
cada um deles da essência humana” (MARX; 2000; p. 86)
Uma última parte descrita por Marx, diz
respeito à alienação dos próprios capitalistas, que pode ser resumida na frase:
“As relações burguesas de produção e circulação, as relações burguesas de
propriedade, (...) que produziu a mágica de tão poderosos meios de produção e
circulação, é um feiticeiro já incapaz de dominar os poderes que ele próprio
conjurou” (MARX e ENGELS; 2012; p. 50).
Outra passagem da explicação de Marx que
vale ser destacada para fazer uma relação com a trama de O processo diz respeito ao conceito de propriedade privada. Para
alcançar o que denominou de estranhamento ou alienação, Marx (2000) parte de
algumas reflexões sobre economia nacional (política econômica) e propriedade
privada. Para ele, a economia nacional entende a propriedade privada como um
fato dado e acabado, sem explicá-la.
Ela (a economia
nacional) percebe o processo material da propriedade privada, que passa, na
realidade, por fórmulas gerais, abstratas, que passam a valer como leis para
ela. Não concebe estas leis, isto é, não mostra como têm origem na essência da
propriedade privada. (MARX; 2000; p. 79)
E, mais a frente, Marx diz que a
propriedade privada é “consequência necessária do trabalho exteriorizado”. Como a economia nacional sobre a propriedade
privada, o tribunal que julga K. não presta os menores esclarecimentos aos
réus, tampouco os funcionários dos tribunais parecem saber algo e talvez nem
mesmo as hierarquias superiores tenham domínio pleno do funcionamento do
tribunal (como o burguês e seu “feitiço”).
Benjamin (1985) levanta a questão de O processo ser um desdobramento da
parábola “Diante da Lei”, “como botão se desdobra na flor” – referindo-se a
criação literária e a estrutura complexa. Sobre esse caráter de “parábolas” de
alguns textos de Kafka, ele diz:
Não são parábolas
e não podem ser lidas no sentido literal. São construídas de tal modo que
podemos citá-las e narrá-las com fins didáticos. Porém conhecemos a doutrina
contida nas parábolas de Kafka e que é ensinada nos gestos e atitudes de K. e
dos animais kafkianos? Essa doutrina não existe (...). De qualquer maneira,
trata-se da questão da organização da vida e do trabalho na comunidade humana.
Essa questão preocupou Kafka como nenhuma outra e era impenetrável para ele. (BENJAMIN;
1995; p.148)
Em vários momentos da narrativa de O processo, o mundo do trabalho se
encontra com o mundo do tribunal que condena K. Alguns exemplos: logo depois de
sua detenção, quando fica na presença do inspetor, também estão ali três
funcionários do banco. Em seguida quando K. se dirige a sua primeira audiência,
se depara com esses três funcionários de novo pelo caminho. A cena do espancamento
ocorre dentro do banco. Em vários momentos do romance alguns personagens
queixam-se de seus trabalhos. A partir de certo ponto, K. não consegue mais
trabalhar, porque só pensa em seu processo. No entanto, além de observar esses
encontros, é preciso especular sobre quais fins
didáticos podem ser alcançados na sobreposição desses mundos, da cena do
espancamento e da trama como um todo.
Carone (2009:1) contextualiza brevemente
a obra, vida e período histórico de Kafka, vale citar que autor foi funcionário
exemplar durante muitos anos de uma companhia de seguros contra acidentes do
trabalho. E começou a escrever O Processo
nos anos da Primeira Guerra Mundial, o que ajuda a entender sua atmosfera
pessimista. Carone (2009:1) também expõe
algumas interpretações sobre O processo,
uma linha dessas interpretações percebe “no romance um esforço bem sucedido de
mapear por dentro a alienação encoberta do dia a dia através das peripécias de
K. pelas instâncias reificadas do mundo administrado” (CARONE; 2009:1; p.73). Heller
diz que “existe apenas um meio de evitar o trabalho de interpretar O Processo: não ler o livro”. E diz que
isso se deve ao “realismo” de Kafka, narrar de maneira simples, lúcida e “real”
uma situação absurda e inacreditável. Heller também lança mão do termo parábola
para descrever alguns textos do autor, e, para ele, é como se o leitor
terminasse seus textos e se perguntasse “Que significa isso?” e ao desafiar uma
ordem intelectual estabelecida e toda forma familiar de compreensão, desperta
aquela ansiedade intelectual que se lança às interpretações.
No começo do período analisado um dos
guardas açoitados, ao reclamar das situações de seu trabalho, diz: “Mas se a
pessoa traz isso (os abusos na detenção) a público, então a punição também tem
de vir”. Mas a punição acontece no quarto de despejo, apertado e escuro, parece
mais um espetáculo particular para K. que a presencia “por acaso”. No dia seguinte
na narrativa, K. encontra a mesma cena, como se fosse uma nova apresentação. E
dessa vez, perde a vergonha do espetáculo e pede aos colegas de trabalho
“Limpem de uma vez o quarto de despejo! Nós estamos afundando na sujeita”
(KAFKA; 1997; p. 92).
Talvez essa seja a lógica do espetáculo
do “teatro ao ar livre de Oklahoma” de que fala Benjamin (1997) em referência a
outra obra de Kafka; os dois funcionários quando fossem limpar o quarto de
despejo se surpreenderiam inicialmente com a cena de espancamento, mas depois
chamariam mais pessoas para vê-la, até a punição se tornar de fato pública.
Considerações
finais
Diferente de autores que procuravam
resolver problemas da realidade com recursos estéticos, Kafka parece querer
aprofundá-los, para retratá-los mais fielmente. Carone (2009) conta a história
de uma visita que Kafka e um amigo fizeram para ver alguns quadros cubistas de
Picasso. O amigo
(...) comentou
que o pintor espanhol distorcia deliberadamente os seres e as coisas. Kafka respondeu
que Picasso não pensava desse modo: “Ele apenas registra as deformidades que
ainda não penetraram em nossa consciência”. Com uma apontaria de mestre,
acrescentou que a “a arte é um espelho que adianta, como um relógio”, sugerindo
que Picasso refletia algo que um dia se tornaria lugar-comum da percepção – “não
as nossas formas, mas as nossas deformidades”. (CARONE; 2009; p.37)
Há um momento inclusive em que Joseph K.
recebe certa ajuda de um pintor, uma “ajuda” que se revela falsa. No capítulo
do espancador, o narrador diz que K. “estava realmente interessado em libertar
os guarda; uma vez que já havia começado a combater a corrupção daquele
tribunal” (KAFKA; 1997; p. 91). Mas K. vai perdendo o interesse nesse combate e
até em sua defesa, tanto que, no final da narrativa, resignado, acaba sendo
executado “como um cão”.
A importância do capítulo “O espancador”
é teatral, não no sentido do “fingimento”, e sim no sentido da força da
representação, na força do gesto. A encenação desse espetáculo que serve de
alegoria para a situação do trabalhador alienado pode ter um fim didático (no
sentido de que fala Benjamin) de mostrar as deformidades a que essa situação
chegou. E o ímpeto de interpretar essas cenas perturbadoras de certa forma
desafiam uma ordem intelectual estabelecida, como diz Heller. Ainda que não
resolva as contradições da realidade, essa interpretação age no plano
ideológico, contra a ideologia dominante (da classe dominante no capitalismo).
Bibliografia
BENJAMIN, W. “Franz Kafka – A propósito
do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras
escolhidas I. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. pp. 137-164.
CARONE, M. “O realismo de Franz Kafka”.
In: Lição de Kafka. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009. pp. 37-46.
__________. “Um dos maiores romances do
século”. In: Lição de Kafka. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009-1. pp. 67-78.
HELLER, E. “O Processo”. In: Kafka. São Paulo: Editora Cultrix, 1974.
pp. 73-95.
KAFKA, F. O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
KONDER, L. Marx – Vida e Obra. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
KONDER, L. O que é dialética. São Paulo: Editora Brasiliense
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial,
2004.
MARX, K e ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Penguin e Companhia das Letras,
2012.
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